HÁ DIAS EM QUE MORREMOS

Há dias em que não se devia sair da cama. Há dias em que tudo nos parece correr mal. Há dias em que tudo corre, efetivamente, mal. E, depois, há dias em que nada acontece e isso nos parece, já por si, suficientemente mau.
Há dias em que não temos paciência nenhuma para nada. Nem para os outros, nem para nós. Tudo nos irrita. Tudo nos dá vontade de chorar. São dias em que temos vontade de soltar de nós a criança interior e de — num berreiro alto, num berreiro com olhos arreganhados, num berreiro que vem do âmago, num berreiro que quase nos põe as entranhas a saltar pelos olhos — assim nos deixamos ficar: só a chorar alto, a chorar com força, a chorar até que algum vizinho nos oiça e nos venha bater à porta para perguntar se está tudo bem. E, do alto da nossa neura, querermos responder-lhe «o que lhe parece?», mas limitarmo-nos a um comedido «Claro que sim! Porque não haveria de estar?»
Há dias em que sabemos que temos mil e uma coisas para fazer: prazos para cumprir, ideias para colocar em prática, mails para responder, coisas para arrumar, clientes para contactar, despesas para organizar, comida para fazer. Mas, apesar disso, nada conseguimos fazer. Os braços pesam-nos demasiado. As pernas também. Cada passo que damos é o resultado de uma força imensa que temos de fazer — uma força imensa mental. Vamos daqui ali e ficamos cansados. Fazemos algo durante um minuto e precisamos logo de cinco ou seis para repousar do pouco que fizemos.
Há dias em que temos os sentimentos e as emoções todas amontoadas dentro do nosso corpo. Não sabemos exatamente o que sentimos, mas sabemos que o que sentimos é demasiado, e confuso, e demolidor. Não sabemos o porquê de o sentirmos, mas sabemos que está cá e que nos faz definhar de dia para dia. Não sabemos como o evitar, como lhe ter mão, como o afastar de nós, mas sabemos que nos altera e, acima de tudo, tudo, temos a certeza de que não queremos continuar a ser, por causa do que sentimos, isto que somos.
Há dias em que tudo nos faz sentir saudades. São dias em que, de repente, nos vem à cabeça uma imagem de há dez anos, ou de há cinco, e até a lembrança do cheiro e do som da chuva a cair se tornam reais. Voltamos a estar ali, cinco ou dez anos antes, naquele mesmo lugar, naquela mesma tarde. São dias em que nos lembramos de coisas em que nunca mais tínhamos pensado e das quais até já nos tínhamos, aparentemente, esquecido. E, mais do que percebermos que não podemos voltar atrás no tempo, duvidamos se, algum dia, voltaremos a ser quem éramos ali, naquela memória.
Há dias em que queremos tanto, tanto fazer planos. Mas não conseguimos. Queremos mudar algo em nós, na nossa vida. Precisamos da mudança. Mas tudo nos parece difícil ou improvável. Mesmo que seja fácil de atingir, acreditamos que não o será por nós. São dias em que questionamos os sonhos, em que colocamos em causa as escolhas que fizemos, em que não sabemos o que vamos fazer amanhã. São dias em que até aquelas coisas, que sempre nos pareceram óbvias, que sempre nos fizeram sentido, que sempre dissemos que conseguíamos e que tínhamos de fazer, perdem a clareza, a cor, o brilho.
Há dias em que até deixamos de acreditar em nós. São dias em que deixamos de sentir orgulho em quem somos. Todas as desculpas que demos a nós próprios, por termos agido de determinada maneira ou por termos cometido determinado erro, nos parecem profundamente imperdoáveis. Achamo-nos culpados de tudo. Achamo-nos pequenos. E duvidamos se algum dia iremos conseguir ser melhores do que somos. E o que somos, nestes dias, parece-nos tão pouco.
Há dias em que o tempo nos parece demasiado assustador. Fazemos contas. Já passámos por metade da nossa vida. Não sabemos se vamos viver mais dez ou mais trinta anos. E, mesmo que vivamos mais trinta anos, é provável que metade deles seja passada com menos mobilidade — do que aquela que ainda temos — para viver a vida que ainda nos falta. São dias em que temos medo de morrer. Pior: são dias em que sabemos que iremos morrer e em que temos consciência de que iremos morrer antes do tempo. Nestes dias, temos esta certeza absoluta de que vamos morrer antes do tempo, porque levámos metade do tempo que passou a adiar aquilo que queríamos fazer. E, por isso, nunca será a altura certa para morrermos. Nunca. Porque haverá sempre tanto mais por sonhar, por sentir e por viver.
Por isso, há dias em que morremos. Várias vezes no mesmo dia. De medo. Porque percebemos que não aproveitamos até à exaustão cada novo dia de vida que, por sorte, ainda temos. E da melhor forma possível: a nossa!
E, nesses dias, sobretudo nesses — que podem ser dias como o de hoje —, há que engolir em seco e nos fazermos à vida, com toda a coragem que ainda nos resta no corpo. Porque o tempo não espera por nós, só porque estamos em dia não!
Fonte: http://capazes.pt/cronicas/ha-dias-em-que-morremos/view-all/

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